Nas ruas pavimentadas de outra cidade suja, o mochileiro era iluminado pela luz pálida das lamparinas enquanto buscava um albergue. A cidade estava cheia naquela noite, pois seria celebrado mais um aniversário do filho de Deus; muitas pessoas festejavam com a fartura comidas, bebidas e também presentes. Provavelmente os albergues e as pensões estariam fechados durante aquela ocasião, foi pensando nessa possibilidade que o mochileiro dirigiu-se a uma ruela escura; com alguma sorte poderia encontrar algum abrigo longe do barulho do festejo.

A lua quase cheia admirava a cidade tingida de cores iridescentes, entretanto também alertava aos mais observadores sobre os maus presságios. Foi dobrando uma esquina qualquer que o mochileiro observou uma legião de homens atravessando uma rua deserta, estavam se dirigindo para um abandonado complexo industrial da cidade. Pelos trapos que vestiam e as barbas embaraçadas que ostentavam, deveriam ser mendigos ou ainda fazer parte do proletariado que fora oprimido após uma fracassada tentativa de revolução. O mochileiro decidiu segui-los a distância, pois não poderia perder a chance caso o tumulto fosse por alguma distribuição caridosa de alimentos ou roupas. Desde que renunciara seu mundo, passara a viver apenas da caridade.

A turba acabou por estacionar em um lugar bem diferente, tratava-se de uma antiga fábrica de peças automotivas. Um pequeno grupo de mendigos se dirigiu à enorme fechadura e poucos minutos bastaram para que a arrombassem com ferramentas improvisadas. Mais alguns minutos demoraram a acenderem o galpão completamente, no centro dele havia um objeto que o mochileiro não conseguiu observar atrás do container em que se escondia. Atravessou então a luz do luar correndo até atingir uma escada de emergência localizada na lateral do prédio, subiu até alcançar uma plataforma de onde era possível ter acesso a uma pequena janela.

A legião de homens esfarrapados e proletários se reuniu ao redor de um estranho objeto: era uma enorme massa de carne rosada, possuía um formato repugnante e diversos orifícios, nela era possível observar pontos que pulsavam como um coração e outros que expeliam um líquido purulento. Apesar da aparência surreal, o objeto era uma nave.

Com as mãos dadas, as pessoas entoavam antigas cantigas em latim, entregando-se a um desconhecido ritual pagão diferente de qualquer crença terráquea. Mordendo os lábios com força e nutrindo uma terrível vontade de vomitar, o mochileiro permaneceu paralisado. Em pouco tempo o canto deu lugar para um sussurro mórbido; alguns mendigos tremiam, como se seus espíritos fossem saltar por suas bocas fétidas. Enfim um mendigo se soltou dos demais e se ajoelhou em frente à nave. O suor frio percorria o rosto do mochileiro enquanto os segundos passavam vagarosamente. Pulsando de forma violenta e acelerada, o objeto de carne abriu uma entranha recheada de cabeças retorcidas ao invés de dentes e com um espasmo engoliu o devoto. Os orifícios abriam e fechavam continuamente. O mochileiro estremeceu ao notar o pequeno, mas nítido, crescimento da massa. A cena se repetiu até não sobrar mais pessoas no galpão. A massa aumentara em pelos cinco vezes seu tamanho original.

Antes que o pânico derrubasse o mochileiro da plataforma, a nave de carne purulenta, agora flutuando um pouco acima do solo, começou a ser envolvida por um brilho negro. Um canto maldito ecoou das entranhas e a massa ganhou pernas, braços, intestinos, órgãos genitais, dentes disformes, unhas e cabeças com expressões alucinadas. Poucos segundos foram suficientes para que a nave, dominada pela escuridão, entrasse em uma fenda dimensional e desaparecesse com seus tripulantes perdidos.

O mochileiro permaneceu aterrorizado por alguns instantes; sua calça manchada de urina mostrava que nunca esqueceria aquela visão infernal. Tão rápido quanto havia subido, o mochileiro desceu da plataforma. Não lembrando o motivo que o levara até aquele galpão, se pôs a caminhar depressa para qualquer local mais habitado.

As lamparinas já não pareciam iluminar tanto as ruas; o barulho dos seus passos parecia duplicado. O medo fez com que o mochileiro chorasse e babasse enquanto avançava desesperadamente. Iria largar toda aquela vida de aventura, de boêmia. Poderia usar as moedas do seu bolso para ligar para sua mãe! Por que não? Seu pai poderia buscá-lo na próxima cidade e tudo voltaria aos seus conformes.

Parou no primeiro telefone público que encontrou, depositou algumas moedas e discou para o número de casa. Um sussurro do outro lado da linha o fez estremecer. Aquela canção maldita começou a ecoar da cabine telefônica. O mochileiro não demorou a chutar a porta e correr mais do que podia aguentar. Atravessando quatro quadras, perseguido por gargalhadas e gritos, parou repentinamente. O objeto estava a sua frente, flutuando com suas protuberâncias que pulsavam freneticamente e seus buracos que agora expeliam sangue.

Uma gota de suor percorreu o rosto do mochileiro. Só teve tempo de morder os lábios quando a bocarra o engoliu violentamente. Novamente a nave se deixou envolver pela escuridão e penetrou assim outra fenda dimensional.

***

O mochileiro acordou em um lugar úmido e pegajoso. Ainda estava vivo! Olhou ao redor e se assombrou quando viu a estrutura tecnológica de uma espaçonave mesclada às paredes e o teto de carne. Um homem barbado, vestindo uma farda negra adornada de insígnias e uma versão cibernética de um capacete de guerra, cercado de soldados, aproximou-se e pôs a falar:

- Meu nome é Câncer, comandante da nave Ódio e líder do povo excluído de SUA sociedade. Você é agora nosso refém e será a única testemunha da queda da Igreja e da chegada do Programador.

O mochileiro se encolheu. Aquilo tudo só podia ser uma mentira; uma mentira desgraçada.

- Levem-no – replicou Câncer e sua boca esboçou um sorriso purulento.




Tenho medo de não viver, de atravessar essa cúpula de vidro e me deparar com um mundo frio. Aqui dentro está quente, mas minha idealização do mundo perdido me leva a crer que pode valer à pena arriscar tudo. Há cerca de 15 anos decidi me prender nesse globo e, com todos mantimentos que precisava, passei a assistir o mundo através da televisão. Aumento de empregos, ascensão nacional, esportes, a formatura dos meus colegas, a vinda do cometa Halley, as festas, as notícias climáticas, as eleições, o aumento da consciência ambiental, os casamentos dos meus melhores amigos, a diminuição da criminalidade, o próspero Natal... eram inúmeras imagens que me faziam pensar sobre a vida. Poderia estar mais seguro em minha cúpula, todavia estava longe de ser uma pessoa completa, estava mais para um simulacro.

Era feriado quando acordei, tomei um café bem forte, digitei a senha de 12 caracteres e abri a porta de aço que me separava da humanidade. Nas ruas que eu via pelo noticiário encontrei fome, mortos, desabrigados, pobreza, luxúria, caos e poluição. Infelizmente minha câmera de vidro não me protegeria dos pensamentos que agora levaria para o resto de vida, por isso decidi que era aquele seria o fim dos tempos.

Novamente em casa liguei os computadores, rasguei minha fantasia de mortal e em frente ao espelho escrevi com fogo o nome Deus em meu corpo. Programei durante 21 dias consecutivos e consegui apagar o plano espacial para recomeçá-lo de novo. Quem sabe não poderia escrever a história melhor que meu Pai ou meu Irmão? Eu era o programador e aquele mundo seria a janela da perfeição; da minha perfeição.




Foi depois do desjejum e da primeira sessão de adoração do dia (sem contar a incessante vigília) que Ezequiel, ao olhar o pátio da Nova Jerusalém, sentiu vontade de brincar ao ver as crianças ao redor do rei Salomão, que ensinava estratégias de batalhas aos pequenos, riscando-as em areias brancas que se amontoavam entre alguns tijolos, assim eles agiriam com maestria ao atrapalhar os jovens que estavam ao redor de Jeremias, muitos jovens, em grande parte suicidas que nunca sonharam em talvez ver o brilho do céu, do Céu, das areias brancas tocadas pelos translúcidos dedos do distante Salomão e pelos pés das crianças que um dia sofreram muito mais que eles, que morreram de coisas trágicas, de atropelamentos, lançadas ao Nilo, no antigo Egito, nas Américas, algumas violentadas pelos próprios pais, que não chegaram a um ano de vida, que sucumbiram de tanto chorar e agora pisavam as areias pálidas do rei Salomão.

Sacudiu a cabeça e foi para a sala de estudos. Um pequeno (diz-se pequeno por milhares) grupo estava ao redor de alguns sufis, e muitos senhores calvos,ouviam pasmos histórias de mártires que nunca imaginaram existir, que teriam sofrido não pelo cristianismo, mas por qualquer fé que permitiu calos em seus pés e muitas dores, muitas dores... Continuou pensando, lembrou do seu primeiro dia ali, da quantidade de crianças, de como Maomé agarrava mal no gol, mas ficava zangado se o alertassem disso.

Pegou a caneta e enfim escreveu.

“Caros,

É com alegria que vos escrevo. Muito bem estou e espero que também estejam, com a Graça de Nosso Senhor Deus, que ilumina esse dia eterno no qual feliz me encontro. Ouvimos aqui tantas histórias, fica difícil tentar segurar a vontade de contar algumas. Pois bem.

Ora, é de conhecimento de todos que muitos tocaram as vestes de Cristo, e muitos foram milagrosamente curados, como não há de ter dúvida e Deus e os homens são eternas testemunhas. Eis que um cego o tocou, em meio a uma multidão que o seguiu no caminho a Jericó, e curado foi. Voltando à sua aldeia, todos se maravilharam. Enfim, com sua família destruída desde o início da cegueira, continuou na sua informalidade de moribundo. Era freqüente ser convidado pelos patriarcas (os montanheses, se não há engano) para que o testassem a troco de tostões, a fim de verificarem se o milagre não passava de truque, desses aprendidos nos cantos úmidos das grandes feiras.

Ganhou bastante dinheiro assim e reconstruiu sua casa. Mas a Graça, clara a este ponto a todos que aqui me lêem, não foi o bastante para mudá-lo. Expulsou sua família de casa e envolveu-se com dezenas de mulheres, bebidas e homens. A pequena Gomorra ali instalada foi mal vista pelo seu povoado, que também cobiçava os bens do agraciado. Organizaram um ataque e esta foi invadida e saqueada, tendo seus muros destruídos e seu senhor feito miserável novamente. Fugindo dos juízes, foi ao deserto e ouviu uma voz grave e confusa que mandava cumprir uma série de tarefas a fim de ser novamente agraciado e perdoado.

Era o modo de ver as pessoas, ouviu em silêncio a raiz de seu problema, pois lhes desejava a brancura da pele, como que para saciar a cede dos olhos recém-abertos. Foi então condenado a viver entre os Escuros (etíopes), já que não sentia desejo pela cor desse povo, e obrigado a contemplar a brandura do templo cavado da rainha de Sabá, de barro claro, a água que achava nas mulheres e homens e sempre quis beber agora transposta em meditação e adoração a Deus e, quando morreu sua alma subiu nem para o céu e nem para o átrio de Abraão, e sim para uma cidadela cenográfica estranha, construída por um homem que, para que nos localizemos, vivia no gelado norte, conhecido por Liev entre os seus, diz-se muito bom, muito bom esse homem, ajudou muita gente.

Essa cidade cenográfica foi postumamente ocupada por anjos e seu uso foi de recontar milagres bíblicos, assim eram relatados por escrito e dados aos anjos, para que estes contassem aos homens. Foi lá que este homem que era cego foi ordenado a nascer de novo,e viver sua vida toda de novo, pois havia agora uma besta terrível, de tantos olhos, que vivia amarrada em algum lugar no céu (Deus queira que eu não saiba!) e só era solta para ver e escrever em um papel especial a vida desses homens que bem morreram, pois não era em todo canto que o mal estava na terra, não é em todo lugar que os demônios chegam para ver e muitas vezes se arrepender, pra ver com os próprios olhos as benfeitorias de Deus. Este foi o modo divino de fazer a todos presenciar a vida inteira desses homens, assim céu e inferno veriam como o Criador é bom, e que o livre-arbítrio pode ser bem usado sim.

O estranho para o homem era o fato de nascer e viver tudo de novo, pois não sentia, não falava, só podia ouvir, pois viveria sua vida toda de novo, afogado na escuridão dentro dele, ouvindo apenas as vozes de sua mãe, enquanto no seu útero, de sua filha suplicando piedade, das prostitutas, das amantes, da terrível voz que ouviu no deserto, das risadas de seus amigos escuros. Quando morreu de novo (foi estranho, muito, e eu sei porque ele me contou) foi enfim liberado para o céu e pode presenciar o espetáculo da besta sendo amarrada novamente por uma imensidão de serafins e suas asas atrapalhadas, assim como os anjos risonhos, que liam o relato de vocabulário tão pobre e esvoaçavam para contar a nova aos homens, como quem sopra um monte de açúcar e..."

Parou um pouco. Ezequiel releu e percebeu que seu vocabulário era tão pobre quanto o da besta amarrada, seria passível do riso dos anjos, o que permitiu tal floreamento ali no final na parte do monte de açúcar, ninguém esperaria uma metáfora (ele achava que era uma metáfora cada vez que se mudam um pouco as coisas, não sabia explicar ─ mas não era uma metáfora) da parte dele. Ficou satisfeito e pensou em ler o texto todo de novo pra mudar mais coisas e ver os erros, mas decidiu continuar depois: tinha tanta vontade de brincar que foi correndo até as crianças.




Tenho dois caminhos: ou fujo ou morro no campo de batalha. Para aqueles que apreciam a astúcia de uma fuga, eu digo: os invasores estão há apenas duas horas de distância. Àqueles honrosos que preferem arriscar seu destino na lâmina de uma espada, rebato: sou o último da minha raça, possuo apenas um daisho, tenho poucos mantimentos e enfrentarei pelo menos cinco mil inimigos. Apenas a sorte pode traçar meu caminho.

Por precaução iniciei um pequeno ritual para encantar minhas armas. Quando pequeno aprendi certos ritos herdados dos escravos alienígenas e com o tempo, através do estudo do ocultismo, aprendi a uni-los com os poderosos feitiços africanos. Em poucos segundos as espadas se destacavam por suas lâminas enegrecidas e recheadas de signos indecifráveis. Nela lia-se SUED, o nome do programa que destruiu o mundo.

Meu corpo também precisava de força e nada como a autoflagelação para livrar-me do medo. Cobri meu rosto com 21 piercings, respeitando o número de familiares que nessa guerra perdi. Resolvi raspar também meu cabelo; queria mostrar às divindades que naquele momento estava livre do plano material, só me interessava viver.

Em frente ao espelho reparei na figura que me encarava: havia calma em seu rosto e sua nudez era revestida pelas plumas da morte.

Para engrandecer meu espírito, desci as escadarias e me conduzi ao portão principal da cidadela. No relento observei as fileiras de máquinas que se aproximavam; meu coração foi intoxicado pelo medo e pelo ódio. Temerosamente minhas mãos alcançaram as espadas e naquele momento, desprovido de qualquer auxílio e sustentado pela confiança, corri na direção do inimigo. Minha visão ficou turva e somente lembro-me da raiva que de mim emanava.

***

Acordei dias depois do ocorrido com as dores das feridas herdadas no combate; o forte cheiro da decomposição me obrigou a sair daquele local. Optei por evadir daquelas terras levando o pouco que me restava. No horizonte da montanha de mortos vi no céu a figura Daquele que me ajudou; senti dentro de mim que era Izrael e que talvez pudesse matar o próprio programador.




Seu Inácio terminou de limpar a casa e foi para o sótão. Dedicava-se às invenções, estas agora contempladas por suas bifocais: pregadores de três pontas, um varal a manivela (extremamente barulhento), chaveiros de pisca-pisca e outros constrangimentos.

Sua filha era a única a comprar suas invenções. Não herdou sua criatividade, apenas seu carro, um Chevy 64'. Tinha um namorado paralítico, que via nos presentes simples do sogro a alegria de seus dias.

No entanto, em cada átomo de suas obras, no âmago escuro e indivisível do Mistério, lá estava o Seu Inácio criando uma máquina do tempo, uma cura, um jeito certo de dizer adeus.

Na claridade taciturna dos dias, em sua vida, seu Inácio formulou um jeito novo de chorar.
Colabore!








A floresta emanava fluorescência através dos vidros blindados. Morris observava a visão onírica tendo em vista sua condição atual. Os selenitas impuseram o fascismo; triunfava sobre o mundo a bandeira negra, nela escrita o nome SUED. A voz de uma figura mórbida, nunca antes vista, coordenava agora os passos da humanidade.

O comboio estava lotado; os únicos locais onde era possível ter um mínimo de conforto estavam ocupados pelos repugnantes soldados fascistas. Eram estes espectros lunares, vestiam cinza e sua respiração possuía o som do anúncio da tempestade. Morris sentia desespero, o que por sua vez proporcionava dores em seu peito. Sentia agulhas penetrando sua carne, rasgando seus tecidos e infiltrando seu “ser”.

O ar quente e a realidade distorcida pelas toneladas de metal que compunham o vagão tornavam o clima pouco agradável; o jovem estudante tinha a mente compenetrada por alucinações anarquistas. Sentiu o corpo formigando, os membros inferiores se flexionando e um calor saltando de seu tronco. Uma luz iridescente denunciou a presença biomecânica em seu corpo; engrenagens, circuitos e órgãos artificiais se tornaram aparentes pela pele translúcida. Suas pupilas alvas e seus punhos marcados por trilhas positrônicas indicaram ali a presença de um andróide. Os soldados selenitas tentaram avançar pela turba para deter o invasor.

Os passageiros, encontrando a figura da discórdia em um corpo energético impresso em metal, sentiram raiva. O ataque foi voraz e Morris só pode tentar se encolher. O comboio estacionou em uma estação, as portas abriram-se e o andróide utilizou sua força biônica para empurrar e correr para longe. Uma legião de fascistas, fanáticos e adoradores da constelação da morte se preparou para a caçada. Morris entrou em um elevador transparente como o material de que agora era composto. Esperou que o céu fosse sua última parada.

O movimento vertical ultrapassou os limites impostos pelos números do painel de controle. Em pouco tempo, o andróide pôde observar a escuridão do multiverso envolvendo-o. No cemitério estelar existiam outros humanóides; estes também ejetados do planeta Terra por seus ideais. Morris se encolheu e deixou-se embalar pela solidão eterna; queria apenas ser aquecido pelo ventre da mãe universo.







O escritório não recebia tinta do novo regime há um bom tempo. A secretária se esforçava para escrever "Motivo da detenção: Crime Político/Subversão" na ficha de Liev. Este, ainda de roupão, observava a marca de bota na porta de seu apartamento em Leningrado, enquanto arrastavam-no para o campo de trabalho.

Cansado de beber o silêncio do Gulag nos primeiros dias, permitiu-se amizade com músicos. Aprendeu a tocar alguns instrumentos e as noites não eram mais tão solitárias. Percebeu que o céu da Sibéria era imenso e abençoava todas as possibilidades.

As botas engraxadas mancharam o pátio e ninguém entendeu nada. Os soldados deveriam combater os alemães antes de chegarem a Estalingrado, portanto saíram com pressa. O ruído da porteira suja de lama se debatendo ao vento talvez foi o riso da ironia de ser preso por irmãos. Todos os presos continuaram trabalhando, mesmo sem capatazes. Pregou-se que ali deveria ser fundado um povoado que prezasse pelas artes, educação e democracia. Liev, há vinte anos preso, ficou confuso com o som da porteira que se debatia.

"Um dois três , vai!" começaram a tocar e foram-se. A pequena caravana de Liev era composta de ciganos, artistas circenses, músicos e outros nômades, ao passo que os presos provenientes de educação burguesa preferiram ficar. Liev, passando pela porteira, esqueceu-se da falhada condenação de sua ficha.

Na terceira volta pela devastada Eurásia, a caravana congregava quinze hectares de pessoas. Eram órfãos, desertores, mulheres que carregavam filhos da dor e alguns poetas. Seguiam ao mesmo passo; a música incessante trazia conforto. Nos comícios, Liev era questionado sobre um possível assentamento. "Em visão tudo isso me foi dito" dizia ao povo. A caminhada permitiu a expiação das dores, agora partiriam para uma nova terra.

O monte presente na visão de Liev ficava as beiras do mar Cáspio, precisamente sobre a histórica Itil. Acamparam próximos a ele e, ao fim dos ventos sazonais, eis que ela surgiu.

Quando a última criança pulou para a superfície daquela ilha que flutuava, Liev notou que seu lugar também não era ali. Ajudou a conceber a nova cidade que, como promessa, não evocaria os dias ruins e teria suas bases na fraternidade.

Ao término das celebrações, tomado quer se de compaixão quer se de auto-indulgência, juntou os músicos da caravana inicial e partiu para mais uma volta pela Eurásia. Em segredo desejou que sua próxima visão revelasse uma cidade próxima a sua terra natal. Tocou a banda e partiram para levar alegria aos esquecidos. Seus dedos salpicavam o acordeom de graça enquanto imaginava outro lugar perfeito, doravante sustentado pelos céus de Leningrado.




Zichu havia sido seqüestrado após um atentado contra a realeza por parte do estado inimigo Zhao. Acabou por deixar seu povo, seu filho e sua esposa. Meses se passaram enquanto era obrigado a viver em uma gaiola, se alimentando de arroz e água; isso quando o arroz já não estava aguado e a última lhe era negada. Não é necessário citar as torturas pelas quais o pai do primeiro imperador chinês foi submetido.

Os confrontos entre os estados de Qin e Zhao se estendiam cada vez mais, assim feiticeiros taoístas foram chamados para dar um fim ao prisioneiro. Zichu foi condenado a viver do outro lado do espelho; lá só encontrou a companhia das sombras dos que foram amaldiçoados pelo Imperador Amarelo. Transtornado pelo tédio dos dias iguais, passou a imitar os habitantes do mundo real, confundindo-os com imagens falsas, quiçá longe da verdadeira essência da beleza.








Por motivos desse conto ter sido publicado pela editora MOJO BOOKS, peço que acessem o link direto para o site da mesma, lá vocês poderão conferir o conto, comentar e ainda votar nele! Aguardo a visualização de todos os leitores do Tigres de Areia.

Abraços saudosos.