Seu Inácio terminou de limpar a casa e foi para o sótão. Dedicava-se às invenções, estas agora contempladas por suas bifocais: pregadores de três pontas, um varal a manivela (extremamente barulhento), chaveiros de pisca-pisca e outros constrangimentos.

Sua filha era a única a comprar suas invenções. Não herdou sua criatividade, apenas seu carro, um Chevy 64'. Tinha um namorado paralítico, que via nos presentes simples do sogro a alegria de seus dias.

No entanto, em cada átomo de suas obras, no âmago escuro e indivisível do Mistério, lá estava o Seu Inácio criando uma máquina do tempo, uma cura, um jeito certo de dizer adeus.

Na claridade taciturna dos dias, em sua vida, seu Inácio formulou um jeito novo de chorar.
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A floresta emanava fluorescência através dos vidros blindados. Morris observava a visão onírica tendo em vista sua condição atual. Os selenitas impuseram o fascismo; triunfava sobre o mundo a bandeira negra, nela escrita o nome SUED. A voz de uma figura mórbida, nunca antes vista, coordenava agora os passos da humanidade.

O comboio estava lotado; os únicos locais onde era possível ter um mínimo de conforto estavam ocupados pelos repugnantes soldados fascistas. Eram estes espectros lunares, vestiam cinza e sua respiração possuía o som do anúncio da tempestade. Morris sentia desespero, o que por sua vez proporcionava dores em seu peito. Sentia agulhas penetrando sua carne, rasgando seus tecidos e infiltrando seu “ser”.

O ar quente e a realidade distorcida pelas toneladas de metal que compunham o vagão tornavam o clima pouco agradável; o jovem estudante tinha a mente compenetrada por alucinações anarquistas. Sentiu o corpo formigando, os membros inferiores se flexionando e um calor saltando de seu tronco. Uma luz iridescente denunciou a presença biomecânica em seu corpo; engrenagens, circuitos e órgãos artificiais se tornaram aparentes pela pele translúcida. Suas pupilas alvas e seus punhos marcados por trilhas positrônicas indicaram ali a presença de um andróide. Os soldados selenitas tentaram avançar pela turba para deter o invasor.

Os passageiros, encontrando a figura da discórdia em um corpo energético impresso em metal, sentiram raiva. O ataque foi voraz e Morris só pode tentar se encolher. O comboio estacionou em uma estação, as portas abriram-se e o andróide utilizou sua força biônica para empurrar e correr para longe. Uma legião de fascistas, fanáticos e adoradores da constelação da morte se preparou para a caçada. Morris entrou em um elevador transparente como o material de que agora era composto. Esperou que o céu fosse sua última parada.

O movimento vertical ultrapassou os limites impostos pelos números do painel de controle. Em pouco tempo, o andróide pôde observar a escuridão do multiverso envolvendo-o. No cemitério estelar existiam outros humanóides; estes também ejetados do planeta Terra por seus ideais. Morris se encolheu e deixou-se embalar pela solidão eterna; queria apenas ser aquecido pelo ventre da mãe universo.







O escritório não recebia tinta do novo regime há um bom tempo. A secretária se esforçava para escrever "Motivo da detenção: Crime Político/Subversão" na ficha de Liev. Este, ainda de roupão, observava a marca de bota na porta de seu apartamento em Leningrado, enquanto arrastavam-no para o campo de trabalho.

Cansado de beber o silêncio do Gulag nos primeiros dias, permitiu-se amizade com músicos. Aprendeu a tocar alguns instrumentos e as noites não eram mais tão solitárias. Percebeu que o céu da Sibéria era imenso e abençoava todas as possibilidades.

As botas engraxadas mancharam o pátio e ninguém entendeu nada. Os soldados deveriam combater os alemães antes de chegarem a Estalingrado, portanto saíram com pressa. O ruído da porteira suja de lama se debatendo ao vento talvez foi o riso da ironia de ser preso por irmãos. Todos os presos continuaram trabalhando, mesmo sem capatazes. Pregou-se que ali deveria ser fundado um povoado que prezasse pelas artes, educação e democracia. Liev, há vinte anos preso, ficou confuso com o som da porteira que se debatia.

"Um dois três , vai!" começaram a tocar e foram-se. A pequena caravana de Liev era composta de ciganos, artistas circenses, músicos e outros nômades, ao passo que os presos provenientes de educação burguesa preferiram ficar. Liev, passando pela porteira, esqueceu-se da falhada condenação de sua ficha.

Na terceira volta pela devastada Eurásia, a caravana congregava quinze hectares de pessoas. Eram órfãos, desertores, mulheres que carregavam filhos da dor e alguns poetas. Seguiam ao mesmo passo; a música incessante trazia conforto. Nos comícios, Liev era questionado sobre um possível assentamento. "Em visão tudo isso me foi dito" dizia ao povo. A caminhada permitiu a expiação das dores, agora partiriam para uma nova terra.

O monte presente na visão de Liev ficava as beiras do mar Cáspio, precisamente sobre a histórica Itil. Acamparam próximos a ele e, ao fim dos ventos sazonais, eis que ela surgiu.

Quando a última criança pulou para a superfície daquela ilha que flutuava, Liev notou que seu lugar também não era ali. Ajudou a conceber a nova cidade que, como promessa, não evocaria os dias ruins e teria suas bases na fraternidade.

Ao término das celebrações, tomado quer se de compaixão quer se de auto-indulgência, juntou os músicos da caravana inicial e partiu para mais uma volta pela Eurásia. Em segredo desejou que sua próxima visão revelasse uma cidade próxima a sua terra natal. Tocou a banda e partiram para levar alegria aos esquecidos. Seus dedos salpicavam o acordeom de graça enquanto imaginava outro lugar perfeito, doravante sustentado pelos céus de Leningrado.




Zichu havia sido seqüestrado após um atentado contra a realeza por parte do estado inimigo Zhao. Acabou por deixar seu povo, seu filho e sua esposa. Meses se passaram enquanto era obrigado a viver em uma gaiola, se alimentando de arroz e água; isso quando o arroz já não estava aguado e a última lhe era negada. Não é necessário citar as torturas pelas quais o pai do primeiro imperador chinês foi submetido.

Os confrontos entre os estados de Qin e Zhao se estendiam cada vez mais, assim feiticeiros taoístas foram chamados para dar um fim ao prisioneiro. Zichu foi condenado a viver do outro lado do espelho; lá só encontrou a companhia das sombras dos que foram amaldiçoados pelo Imperador Amarelo. Transtornado pelo tédio dos dias iguais, passou a imitar os habitantes do mundo real, confundindo-os com imagens falsas, quiçá longe da verdadeira essência da beleza.