Foi depois do desjejum e da primeira sessão de adoração do dia (sem contar a incessante vigília) que Ezequiel, ao olhar o pátio da Nova Jerusalém, sentiu vontade de brincar ao ver as crianças ao redor do rei Salomão, que ensinava estratégias de batalhas aos pequenos, riscando-as em areias brancas que se amontoavam entre alguns tijolos, assim eles agiriam com maestria ao atrapalhar os jovens que estavam ao redor de Jeremias, muitos jovens, em grande parte suicidas que nunca sonharam em talvez ver o brilho do céu, do Céu, das areias brancas tocadas pelos translúcidos dedos do distante Salomão e pelos pés das crianças que um dia sofreram muito mais que eles, que morreram de coisas trágicas, de atropelamentos, lançadas ao Nilo, no antigo Egito, nas Américas, algumas violentadas pelos próprios pais, que não chegaram a um ano de vida, que sucumbiram de tanto chorar e agora pisavam as areias pálidas do rei Salomão.

Sacudiu a cabeça e foi para a sala de estudos. Um pequeno (diz-se pequeno por milhares) grupo estava ao redor de alguns sufis, e muitos senhores calvos,ouviam pasmos histórias de mártires que nunca imaginaram existir, que teriam sofrido não pelo cristianismo, mas por qualquer fé que permitiu calos em seus pés e muitas dores, muitas dores... Continuou pensando, lembrou do seu primeiro dia ali, da quantidade de crianças, de como Maomé agarrava mal no gol, mas ficava zangado se o alertassem disso.

Pegou a caneta e enfim escreveu.

“Caros,

É com alegria que vos escrevo. Muito bem estou e espero que também estejam, com a Graça de Nosso Senhor Deus, que ilumina esse dia eterno no qual feliz me encontro. Ouvimos aqui tantas histórias, fica difícil tentar segurar a vontade de contar algumas. Pois bem.

Ora, é de conhecimento de todos que muitos tocaram as vestes de Cristo, e muitos foram milagrosamente curados, como não há de ter dúvida e Deus e os homens são eternas testemunhas. Eis que um cego o tocou, em meio a uma multidão que o seguiu no caminho a Jericó, e curado foi. Voltando à sua aldeia, todos se maravilharam. Enfim, com sua família destruída desde o início da cegueira, continuou na sua informalidade de moribundo. Era freqüente ser convidado pelos patriarcas (os montanheses, se não há engano) para que o testassem a troco de tostões, a fim de verificarem se o milagre não passava de truque, desses aprendidos nos cantos úmidos das grandes feiras.

Ganhou bastante dinheiro assim e reconstruiu sua casa. Mas a Graça, clara a este ponto a todos que aqui me lêem, não foi o bastante para mudá-lo. Expulsou sua família de casa e envolveu-se com dezenas de mulheres, bebidas e homens. A pequena Gomorra ali instalada foi mal vista pelo seu povoado, que também cobiçava os bens do agraciado. Organizaram um ataque e esta foi invadida e saqueada, tendo seus muros destruídos e seu senhor feito miserável novamente. Fugindo dos juízes, foi ao deserto e ouviu uma voz grave e confusa que mandava cumprir uma série de tarefas a fim de ser novamente agraciado e perdoado.

Era o modo de ver as pessoas, ouviu em silêncio a raiz de seu problema, pois lhes desejava a brancura da pele, como que para saciar a cede dos olhos recém-abertos. Foi então condenado a viver entre os Escuros (etíopes), já que não sentia desejo pela cor desse povo, e obrigado a contemplar a brandura do templo cavado da rainha de Sabá, de barro claro, a água que achava nas mulheres e homens e sempre quis beber agora transposta em meditação e adoração a Deus e, quando morreu sua alma subiu nem para o céu e nem para o átrio de Abraão, e sim para uma cidadela cenográfica estranha, construída por um homem que, para que nos localizemos, vivia no gelado norte, conhecido por Liev entre os seus, diz-se muito bom, muito bom esse homem, ajudou muita gente.

Essa cidade cenográfica foi postumamente ocupada por anjos e seu uso foi de recontar milagres bíblicos, assim eram relatados por escrito e dados aos anjos, para que estes contassem aos homens. Foi lá que este homem que era cego foi ordenado a nascer de novo,e viver sua vida toda de novo, pois havia agora uma besta terrível, de tantos olhos, que vivia amarrada em algum lugar no céu (Deus queira que eu não saiba!) e só era solta para ver e escrever em um papel especial a vida desses homens que bem morreram, pois não era em todo canto que o mal estava na terra, não é em todo lugar que os demônios chegam para ver e muitas vezes se arrepender, pra ver com os próprios olhos as benfeitorias de Deus. Este foi o modo divino de fazer a todos presenciar a vida inteira desses homens, assim céu e inferno veriam como o Criador é bom, e que o livre-arbítrio pode ser bem usado sim.

O estranho para o homem era o fato de nascer e viver tudo de novo, pois não sentia, não falava, só podia ouvir, pois viveria sua vida toda de novo, afogado na escuridão dentro dele, ouvindo apenas as vozes de sua mãe, enquanto no seu útero, de sua filha suplicando piedade, das prostitutas, das amantes, da terrível voz que ouviu no deserto, das risadas de seus amigos escuros. Quando morreu de novo (foi estranho, muito, e eu sei porque ele me contou) foi enfim liberado para o céu e pode presenciar o espetáculo da besta sendo amarrada novamente por uma imensidão de serafins e suas asas atrapalhadas, assim como os anjos risonhos, que liam o relato de vocabulário tão pobre e esvoaçavam para contar a nova aos homens, como quem sopra um monte de açúcar e..."

Parou um pouco. Ezequiel releu e percebeu que seu vocabulário era tão pobre quanto o da besta amarrada, seria passível do riso dos anjos, o que permitiu tal floreamento ali no final na parte do monte de açúcar, ninguém esperaria uma metáfora (ele achava que era uma metáfora cada vez que se mudam um pouco as coisas, não sabia explicar ─ mas não era uma metáfora) da parte dele. Ficou satisfeito e pensou em ler o texto todo de novo pra mudar mais coisas e ver os erros, mas decidiu continuar depois: tinha tanta vontade de brincar que foi correndo até as crianças.




Tenho dois caminhos: ou fujo ou morro no campo de batalha. Para aqueles que apreciam a astúcia de uma fuga, eu digo: os invasores estão há apenas duas horas de distância. Àqueles honrosos que preferem arriscar seu destino na lâmina de uma espada, rebato: sou o último da minha raça, possuo apenas um daisho, tenho poucos mantimentos e enfrentarei pelo menos cinco mil inimigos. Apenas a sorte pode traçar meu caminho.

Por precaução iniciei um pequeno ritual para encantar minhas armas. Quando pequeno aprendi certos ritos herdados dos escravos alienígenas e com o tempo, através do estudo do ocultismo, aprendi a uni-los com os poderosos feitiços africanos. Em poucos segundos as espadas se destacavam por suas lâminas enegrecidas e recheadas de signos indecifráveis. Nela lia-se SUED, o nome do programa que destruiu o mundo.

Meu corpo também precisava de força e nada como a autoflagelação para livrar-me do medo. Cobri meu rosto com 21 piercings, respeitando o número de familiares que nessa guerra perdi. Resolvi raspar também meu cabelo; queria mostrar às divindades que naquele momento estava livre do plano material, só me interessava viver.

Em frente ao espelho reparei na figura que me encarava: havia calma em seu rosto e sua nudez era revestida pelas plumas da morte.

Para engrandecer meu espírito, desci as escadarias e me conduzi ao portão principal da cidadela. No relento observei as fileiras de máquinas que se aproximavam; meu coração foi intoxicado pelo medo e pelo ódio. Temerosamente minhas mãos alcançaram as espadas e naquele momento, desprovido de qualquer auxílio e sustentado pela confiança, corri na direção do inimigo. Minha visão ficou turva e somente lembro-me da raiva que de mim emanava.

***

Acordei dias depois do ocorrido com as dores das feridas herdadas no combate; o forte cheiro da decomposição me obrigou a sair daquele local. Optei por evadir daquelas terras levando o pouco que me restava. No horizonte da montanha de mortos vi no céu a figura Daquele que me ajudou; senti dentro de mim que era Izrael e que talvez pudesse matar o próprio programador.




Seu Inácio terminou de limpar a casa e foi para o sótão. Dedicava-se às invenções, estas agora contempladas por suas bifocais: pregadores de três pontas, um varal a manivela (extremamente barulhento), chaveiros de pisca-pisca e outros constrangimentos.

Sua filha era a única a comprar suas invenções. Não herdou sua criatividade, apenas seu carro, um Chevy 64'. Tinha um namorado paralítico, que via nos presentes simples do sogro a alegria de seus dias.

No entanto, em cada átomo de suas obras, no âmago escuro e indivisível do Mistério, lá estava o Seu Inácio criando uma máquina do tempo, uma cura, um jeito certo de dizer adeus.

Na claridade taciturna dos dias, em sua vida, seu Inácio formulou um jeito novo de chorar.
Colabore!








A floresta emanava fluorescência através dos vidros blindados. Morris observava a visão onírica tendo em vista sua condição atual. Os selenitas impuseram o fascismo; triunfava sobre o mundo a bandeira negra, nela escrita o nome SUED. A voz de uma figura mórbida, nunca antes vista, coordenava agora os passos da humanidade.

O comboio estava lotado; os únicos locais onde era possível ter um mínimo de conforto estavam ocupados pelos repugnantes soldados fascistas. Eram estes espectros lunares, vestiam cinza e sua respiração possuía o som do anúncio da tempestade. Morris sentia desespero, o que por sua vez proporcionava dores em seu peito. Sentia agulhas penetrando sua carne, rasgando seus tecidos e infiltrando seu “ser”.

O ar quente e a realidade distorcida pelas toneladas de metal que compunham o vagão tornavam o clima pouco agradável; o jovem estudante tinha a mente compenetrada por alucinações anarquistas. Sentiu o corpo formigando, os membros inferiores se flexionando e um calor saltando de seu tronco. Uma luz iridescente denunciou a presença biomecânica em seu corpo; engrenagens, circuitos e órgãos artificiais se tornaram aparentes pela pele translúcida. Suas pupilas alvas e seus punhos marcados por trilhas positrônicas indicaram ali a presença de um andróide. Os soldados selenitas tentaram avançar pela turba para deter o invasor.

Os passageiros, encontrando a figura da discórdia em um corpo energético impresso em metal, sentiram raiva. O ataque foi voraz e Morris só pode tentar se encolher. O comboio estacionou em uma estação, as portas abriram-se e o andróide utilizou sua força biônica para empurrar e correr para longe. Uma legião de fascistas, fanáticos e adoradores da constelação da morte se preparou para a caçada. Morris entrou em um elevador transparente como o material de que agora era composto. Esperou que o céu fosse sua última parada.

O movimento vertical ultrapassou os limites impostos pelos números do painel de controle. Em pouco tempo, o andróide pôde observar a escuridão do multiverso envolvendo-o. No cemitério estelar existiam outros humanóides; estes também ejetados do planeta Terra por seus ideais. Morris se encolheu e deixou-se embalar pela solidão eterna; queria apenas ser aquecido pelo ventre da mãe universo.







O escritório não recebia tinta do novo regime há um bom tempo. A secretária se esforçava para escrever "Motivo da detenção: Crime Político/Subversão" na ficha de Liev. Este, ainda de roupão, observava a marca de bota na porta de seu apartamento em Leningrado, enquanto arrastavam-no para o campo de trabalho.

Cansado de beber o silêncio do Gulag nos primeiros dias, permitiu-se amizade com músicos. Aprendeu a tocar alguns instrumentos e as noites não eram mais tão solitárias. Percebeu que o céu da Sibéria era imenso e abençoava todas as possibilidades.

As botas engraxadas mancharam o pátio e ninguém entendeu nada. Os soldados deveriam combater os alemães antes de chegarem a Estalingrado, portanto saíram com pressa. O ruído da porteira suja de lama se debatendo ao vento talvez foi o riso da ironia de ser preso por irmãos. Todos os presos continuaram trabalhando, mesmo sem capatazes. Pregou-se que ali deveria ser fundado um povoado que prezasse pelas artes, educação e democracia. Liev, há vinte anos preso, ficou confuso com o som da porteira que se debatia.

"Um dois três , vai!" começaram a tocar e foram-se. A pequena caravana de Liev era composta de ciganos, artistas circenses, músicos e outros nômades, ao passo que os presos provenientes de educação burguesa preferiram ficar. Liev, passando pela porteira, esqueceu-se da falhada condenação de sua ficha.

Na terceira volta pela devastada Eurásia, a caravana congregava quinze hectares de pessoas. Eram órfãos, desertores, mulheres que carregavam filhos da dor e alguns poetas. Seguiam ao mesmo passo; a música incessante trazia conforto. Nos comícios, Liev era questionado sobre um possível assentamento. "Em visão tudo isso me foi dito" dizia ao povo. A caminhada permitiu a expiação das dores, agora partiriam para uma nova terra.

O monte presente na visão de Liev ficava as beiras do mar Cáspio, precisamente sobre a histórica Itil. Acamparam próximos a ele e, ao fim dos ventos sazonais, eis que ela surgiu.

Quando a última criança pulou para a superfície daquela ilha que flutuava, Liev notou que seu lugar também não era ali. Ajudou a conceber a nova cidade que, como promessa, não evocaria os dias ruins e teria suas bases na fraternidade.

Ao término das celebrações, tomado quer se de compaixão quer se de auto-indulgência, juntou os músicos da caravana inicial e partiu para mais uma volta pela Eurásia. Em segredo desejou que sua próxima visão revelasse uma cidade próxima a sua terra natal. Tocou a banda e partiram para levar alegria aos esquecidos. Seus dedos salpicavam o acordeom de graça enquanto imaginava outro lugar perfeito, doravante sustentado pelos céus de Leningrado.




Zichu havia sido seqüestrado após um atentado contra a realeza por parte do estado inimigo Zhao. Acabou por deixar seu povo, seu filho e sua esposa. Meses se passaram enquanto era obrigado a viver em uma gaiola, se alimentando de arroz e água; isso quando o arroz já não estava aguado e a última lhe era negada. Não é necessário citar as torturas pelas quais o pai do primeiro imperador chinês foi submetido.

Os confrontos entre os estados de Qin e Zhao se estendiam cada vez mais, assim feiticeiros taoístas foram chamados para dar um fim ao prisioneiro. Zichu foi condenado a viver do outro lado do espelho; lá só encontrou a companhia das sombras dos que foram amaldiçoados pelo Imperador Amarelo. Transtornado pelo tédio dos dias iguais, passou a imitar os habitantes do mundo real, confundindo-os com imagens falsas, quiçá longe da verdadeira essência da beleza.








Por motivos desse conto ter sido publicado pela editora MOJO BOOKS, peço que acessem o link direto para o site da mesma, lá vocês poderão conferir o conto, comentar e ainda votar nele! Aguardo a visualização de todos os leitores do Tigres de Areia.

Abraços saudosos.



"Não é isso meu bebê, depois a gente conversa, tá? Mamãe tem que trabalhar. Oi, amor, deixa pra depois, tô estourando de dor de cabeça, é... não dá pra falar agora... beijo. Filha, liberei o cartão pra esse fim de semana, juízo. Beijo." A diretora, ao terminar as ligações, percebeu que seus apresentadores engordaram. Ignorou, a rotina permitia certos relaxos.

Dias depois, após rebloquear o cartão da filha como represália, viu um inédito marceneiro no set. "A madeira do palco rachou por excesso de peso". Conversou com o cenógrafo e decidiram reforçar o estúdio.

As novas lentes chegaram em cima da hora. Foram compradas para resolver o problema de obesidade dos apresentadores, que ainda engordavam em progressão. Aliviada, liberou a secretária para comprar o presente do filho, entregar um vinho ao marido e as passagens de avião à filha. O especial de natal entrava no ar em segundos, estreando as novas lentes.

"É a única solução, dona" explicava o cabo-man: a parte elétrica do estúdio estava queimando a gordura dos apresentadores, que, excepcionalmente grandes, perderam o tato. "O problema mesmo é o cheiro de fritura que isso faz, dona". Depois de mandar o motorista tirar o filho do DP e proibir o segurança da filha de deixá-la subir aos bailes da favela, notou que o marido estava ausente há algum tempo. Sacudiu a cabeça de pensamentos mal feitos, decidiu que o programa deveria ser em locação externa e aposentou as lentes inúteis da câmera.

Quando o filho se suicidou, a filha decidiu fugir de vez pro morro e leu "vamos dar um tempo" no silêncio do marido, os três apresentadores explodiram ao mesmo tempo, ao vivo e a cores, no canal 20.




Kipra, durante o degelo (o segundo) do paraíso, hoje fragmentado nas ilhas do Pacífico, foi um servo fiel. Filho de escravos, foi comprado pelo alquimista da tribo por ser o dravidiano mais belo da feira.

Passou a estudar os livros lamaístas de seu senhor enquanto não era violentado, assim enchia o peito, que nunca amadureceu para sentir saudades, com ensinamentos estranhos. Um dia, na ilha de todos os tons, Kipra inventou a cor cinza. Ao passo que escravos não tinham direito à propriedade, seu mestre se assenhorou da criação.

Kipra, reconhecido como o primeiro melancólico, nunca deixou de ser um servo fiel.



"Embainha a tua espada; porque todos os que lançarem mão da espada, à espada morrerão." - Mateus 26:47


"Eu vou dominar o mundo!"

Foram as palavras de Renato na formatura do curso de publicidade, seguidas de riso geral. Depois veio a pós, o mestrado, os estudos da cor e da semiótica. Renato tornara-se um mestre dos sentidos, na mais precisa definição. Sua agência produzia inúmeras peças. Promoveu de bandas de rock a sabonetes, sempre com o mais sútil controle sinestésico. O preço de sua publicidade provocou divórcios, histerias e paixões irremediáveis nos mais diversos tipos. Renato nem sabia de seu poder , e lucrava.

"Mas esper..!"

Balbuciou à enfermeira que arrancava suas calças ensanguentadas. Sentiu a cabeça pesar. Desmaiou e contaram que foi atropelado por um Chevy 64'. Não sentia mais o corpo, tornara-se um vegetal, só conseguia falar. A família regava sua depressão com as eventuais milongas, e ele só ouvia, na cadeira de rodas , na sala de jantar. Renunciou ao trabalho e passava os dias em casa, toda sua sabedoria atrofiou.

"Verde... cheiroso.. bom."

Disse, infantil, enquanto olhava seu presente. Recebia com freqüencia presentes coloridos e cheirosos, que levavam-no ao estado mais débil do cérebro. Fazia pirraça para segurá-los. Acusavam-no, aos sussurros penosos, de loucura. Um dia um Chevy 64' estacionou na frente de sua casa. A dona, cínica, riu-se do efeito da vingança ao ver o vegetativo Renato. "Moça.. presente?" foi o máximo que ele formulou. Após entregar mais um presente, aberto as pressas, confessou: o homem que mais amou na vida nunca existiu, fora apenas mais um trabalho do publicitário. A dona do Chevy 64' retirou-se, de certo modo, satisfeita.




Embriagados de ódio, os policiais tomaram a última dose de heroína antes de dispararem nas fétidas ruas da metrópole com seus triciclos recheados de signos anarquistas. Armados de machados, correntes e navalhas, dirigiram-se para a praça do relógio; vestiam-se com pinturas indígenas de guerra e ocupavam-se em gritar todo tipo de frase revolucionária. Eram três.

Os pedestres se escondiam dos sons sintéticos emitidos pelos triciclos (ou eram cavalos mecânicos?) que pilotavam. O ar cheirava a carne e a podridão. Carreiras de pó eram inspiradas por anjos, enquanto o trio de policiais atropelava crianças e fazia assobiar a lâmina enferrujada da navalha por entre os pescoços de transeuntes. Os nervos rasgavam por dentro; toxinas subiam e desciam por entre pensamentos filosóficos e libertadores. Burnout baby!

A praça do relógio estava cheia. Muitas pessoas aproveitavam aquelas serenas tardes de Domingo para fazerem orgias e praticarem atos pagãos. A selvageria humana brindava taças em nome dos deuses da perversão! Os nervos aceleravam. Os policiais, lavados de fluidos corpóreos até a alma, corriam ferozmente para seu destino gore. Ácidos energéticos artificiais saltitavam por dentro do crânio coberto por um quepe.

Adentraram a praça; o horror show começaria. A heroína eletrizava os policiais, eletrizava o trio de policiais que assassinavam sob seus três triciclos manchados de excitação. Machados cegos racharam as têmporas de maliciosos que insistiam em praticar posições anormais nas suas orgias. Navalhas deformaram mulheres pagãs em meio a um rito nefasto. Degolaram também, sentindo o espesso líquido vazando por dentro de suas calças, boêmios, sádicos, andróides, magos, demônios e seres invocados por magias proibidas. A praça mergulhava em sangue e ardia como um caldeirão de carne humana; a situação era semelhante ao de um circo de membros removidos cirurgicamente e animados por uma tecnologia doentia.

Mataram todos; estupraram ainda alguns mortos. Os policiais, porém ainda gritavam palavras ininteligíveis e começavam a perfurar seus próprios corpos. Os nervos urravam de prazer, pois ainda queriam mais. Após outra dose de heroína, esta acrescentada de alquímicos, os policiais com pinturas indígenas se entreolharam, fizeram o sinal do caos e puseram-se a matar uns aos outros; tudo ritmado ao som ácido de um jazz decadente.




01h37min AM

Depois de tomar um copo de Coca-Cola, ir ao banheiro e preparar minha cama para ir dormir, resolvi escrever um conto. Imaginei escrever um texto de terror, algo com espíritos, demônios ou alguma aberração em busca de vingança; algo bem clichê mesmo! Infelizmente acabei por ficar sem ter o que escrever; falta de criatividade dá nisso. Vou ir assistir um pouco de televisão, porque acabou de começar “Alien – O Oitavo Passageiro”.

03h30min AM

Esse filme é mesmo um clássico do cinema de ficção científica. Agora que já escovei os dentes, tenho uma chance de pelos menos iniciar um parágrafo. Que tal falar sobre um cientista que... só um momento, acho que tem alguém lá embaixo.

03h38min AM

Voltei. Tem alguma coisa lá na cozinha. Eu vi algo quando desci a escada e olhei de esguelha para a pia... não vi muito bem o que era, mas era um vulto bem grande, espero que seja um cachorro ou algum outro animal que entrou pela porta dos fundos; isso já aconteceu outras vezes. Vou ligar para meu pai e ver onde ele guardou aquela espingarda de chumbo; melhor prevenir.

03h53min AM

Já liguei para ele; acabei achando a espingarda no fundo do armário, junto de umas bugigangas. Acho que aquela coisa ainda está lá, estou ouvindo alguns gemidos. Vou descer com cautela e espantá-la; só usarei a espingarda se for preciso.

04h01min AM

Estou preso aqui no quarto! Tem alguma coisa do lado de fora. Acabei deixando a espingarda cair quando vi uma figura de formato bizarro nos pés da escada. Era como um espectro translúcido de cor negra, ele tinha um formato estranho, eu não parei para olhar direito, mas era redondo e parecia que algumas faces estavam gritando de dentro da esfera central. Ele não tinha rosto, não tinha boca, contudo começou a guinchar quando me viu! Antes de subir as escadas correndo, reparei que havia símbolos e uma escuridão rodeando aquela coisa, aquela coisa.

04h24min AM

Lá fora ainda está silencioso. Pior que deixei o telefone bem em cima da cama dos meus pais. Não sei se abro a porta e corro para lá...

04h39min AM

Ainda estou aqui; lá fora não há nada, apesar de ouvir vagamente alguns barulhos curiosos. Trens, leões, o motor de um barco, crianças rindo, um sino, uma voz típica de um comercial radiofônico, alguém falando em uma língua estranha, uma bateria e um ar condicionado sendo ligado. Já estou entrando em desespero, meus pais só voltam amanhã de manhã. Eu poderia ir dormir, mas nada garante que eu não sofra um ataque durante o resto da noite. Espero que tudo não passe de uma brincadeira idiota dos meus amigos...

04h43min AM

Vou correr para o quarto dos meus pais agora, creio que consiga pegar o telefone antes que me peguem.

05h01min AM

É O FIM! ACABOU, ACABOU TUDO! NÃO ESTOU ENTENDENDO. Quando eu abri a porta do meu quarto, não havia NADA, mas NADA mesmo, a soleira da minha porta divida o meu quarto do resto inexistente, do vazio. Do outro lado do umbral só havia a cor branca, não existia mais nada além. Devo estar sonhando, não é possível. Vou olhar pela janela, vou pular do segundo andar mesmo e correr até o posto policial mais próximo.

05h04min AM

MERDA! Como pode estar acontecendo isso? Não há nada através da janela, nada mesmo, assim como do outro lado da porta. Acho que vou dormir, não estou me sentindo bem.

08h15min AM

09h00min AM

10h25min AM

11h35min AM

Nenhum canal de TV tem sintonia. A internet não está conectando e a energia elétrica não funciona mais; só estou com dois terços da bateria do laptop agora. Devo estar drogado, não é possível. Pelo menos consegui meu conto de terror, isso é irônico demais.

11h52min AM

Vou morrer de tédio. Vou morrer sem ver meus pais. Vou morrer sem ter lido todos os livros que queria e principalmente vou morrer virgem.

01h03min PM

Rezei um pouco, isso me deixou um pouco mais calmo. Estou morrendo de fome; estou pensando seriamente em atravessar o nada.

01h14min PM

Aqueles barulhos estranhos estão voltando... Aquela coisa! ELA ESTÁ VINDO, EU SINTO ISSO! Acho que vou sair pela janela, não importa em que lugar eu vá parar. Espero que alguém leia esse monte de lixo que escrevi.

01h37min PM

***

Após doze horas desacordado, o garoto levantou de modo abrupto; em sua boca estava o gosto azedo de um presságio.








Por motivos desse conto ter sido publicado pela editora MOJO BOOKS, peço que acessem o link direto para o site da mesma, lá vocês poderão conferir o conto, comentar e ainda votar nele! Aguardo a visualização de todos os leitores do Tigres de Areia.

Abraços saudosos.



Das conversas de MSN, da amizade e da imaginação surgiram os Tigres de Areia.

Cezar, amante da fantasia, das ficções e de outros tanto f's, e Willian, do assombro, do maravilhamento e de outros infinitos, fizeram este blog para convidar amigos e interessados para o exercício de crítica do nosso material que até então só foi veiculado entre os dois. Em plena flor criativa, descobriram novas faces para o texto; novos experimentos para com a milenar atividade de contar mentiras e histórias. Com inspirações em músicas, arte, escritores que vão desde Ítalo Calvino até Michael Ende, o projeto, que ainda mantém proporções modestas, pretende, utopicamente, driblar o pós-modernismo e, futuramente, criar laços com outros tantos companheiros que apreciam e desafiam a arte da escrita.

"Dividir e conquistar" é a desgastada máxima , portanto abrimos espaço para jovens talentos da escrita e ilustração. Se quiser fazer parte da equipe, entre em contato conosco através do email tigresdeareia@gmail.com.