Foi depois do desjejum e da primeira sessão de adoração do dia (sem contar a incessante vigília) que Ezequiel, ao olhar o pátio da Nova Jerusalém, sentiu vontade de brincar ao ver as crianças ao redor do rei Salomão, que ensinava estratégias de batalhas aos pequenos, riscando-as em areias brancas que se amontoavam entre alguns tijolos, assim eles agiriam com maestria ao atrapalhar os jovens que estavam ao redor de Jeremias, muitos jovens, em grande parte suicidas que nunca sonharam em talvez ver o brilho do céu, do Céu, das areias brancas tocadas pelos translúcidos dedos do distante Salomão e pelos pés das crianças que um dia sofreram muito mais que eles, que morreram de coisas trágicas, de atropelamentos, lançadas ao Nilo, no antigo Egito, nas Américas, algumas violentadas pelos próprios pais, que não chegaram a um ano de vida, que sucumbiram de tanto chorar e agora pisavam as areias pálidas do rei Salomão.

Sacudiu a cabeça e foi para a sala de estudos. Um pequeno (diz-se pequeno por milhares) grupo estava ao redor de alguns sufis, e muitos senhores calvos,ouviam pasmos histórias de mártires que nunca imaginaram existir, que teriam sofrido não pelo cristianismo, mas por qualquer fé que permitiu calos em seus pés e muitas dores, muitas dores... Continuou pensando, lembrou do seu primeiro dia ali, da quantidade de crianças, de como Maomé agarrava mal no gol, mas ficava zangado se o alertassem disso.

Pegou a caneta e enfim escreveu.

“Caros,

É com alegria que vos escrevo. Muito bem estou e espero que também estejam, com a Graça de Nosso Senhor Deus, que ilumina esse dia eterno no qual feliz me encontro. Ouvimos aqui tantas histórias, fica difícil tentar segurar a vontade de contar algumas. Pois bem.

Ora, é de conhecimento de todos que muitos tocaram as vestes de Cristo, e muitos foram milagrosamente curados, como não há de ter dúvida e Deus e os homens são eternas testemunhas. Eis que um cego o tocou, em meio a uma multidão que o seguiu no caminho a Jericó, e curado foi. Voltando à sua aldeia, todos se maravilharam. Enfim, com sua família destruída desde o início da cegueira, continuou na sua informalidade de moribundo. Era freqüente ser convidado pelos patriarcas (os montanheses, se não há engano) para que o testassem a troco de tostões, a fim de verificarem se o milagre não passava de truque, desses aprendidos nos cantos úmidos das grandes feiras.

Ganhou bastante dinheiro assim e reconstruiu sua casa. Mas a Graça, clara a este ponto a todos que aqui me lêem, não foi o bastante para mudá-lo. Expulsou sua família de casa e envolveu-se com dezenas de mulheres, bebidas e homens. A pequena Gomorra ali instalada foi mal vista pelo seu povoado, que também cobiçava os bens do agraciado. Organizaram um ataque e esta foi invadida e saqueada, tendo seus muros destruídos e seu senhor feito miserável novamente. Fugindo dos juízes, foi ao deserto e ouviu uma voz grave e confusa que mandava cumprir uma série de tarefas a fim de ser novamente agraciado e perdoado.

Era o modo de ver as pessoas, ouviu em silêncio a raiz de seu problema, pois lhes desejava a brancura da pele, como que para saciar a cede dos olhos recém-abertos. Foi então condenado a viver entre os Escuros (etíopes), já que não sentia desejo pela cor desse povo, e obrigado a contemplar a brandura do templo cavado da rainha de Sabá, de barro claro, a água que achava nas mulheres e homens e sempre quis beber agora transposta em meditação e adoração a Deus e, quando morreu sua alma subiu nem para o céu e nem para o átrio de Abraão, e sim para uma cidadela cenográfica estranha, construída por um homem que, para que nos localizemos, vivia no gelado norte, conhecido por Liev entre os seus, diz-se muito bom, muito bom esse homem, ajudou muita gente.

Essa cidade cenográfica foi postumamente ocupada por anjos e seu uso foi de recontar milagres bíblicos, assim eram relatados por escrito e dados aos anjos, para que estes contassem aos homens. Foi lá que este homem que era cego foi ordenado a nascer de novo,e viver sua vida toda de novo, pois havia agora uma besta terrível, de tantos olhos, que vivia amarrada em algum lugar no céu (Deus queira que eu não saiba!) e só era solta para ver e escrever em um papel especial a vida desses homens que bem morreram, pois não era em todo canto que o mal estava na terra, não é em todo lugar que os demônios chegam para ver e muitas vezes se arrepender, pra ver com os próprios olhos as benfeitorias de Deus. Este foi o modo divino de fazer a todos presenciar a vida inteira desses homens, assim céu e inferno veriam como o Criador é bom, e que o livre-arbítrio pode ser bem usado sim.

O estranho para o homem era o fato de nascer e viver tudo de novo, pois não sentia, não falava, só podia ouvir, pois viveria sua vida toda de novo, afogado na escuridão dentro dele, ouvindo apenas as vozes de sua mãe, enquanto no seu útero, de sua filha suplicando piedade, das prostitutas, das amantes, da terrível voz que ouviu no deserto, das risadas de seus amigos escuros. Quando morreu de novo (foi estranho, muito, e eu sei porque ele me contou) foi enfim liberado para o céu e pode presenciar o espetáculo da besta sendo amarrada novamente por uma imensidão de serafins e suas asas atrapalhadas, assim como os anjos risonhos, que liam o relato de vocabulário tão pobre e esvoaçavam para contar a nova aos homens, como quem sopra um monte de açúcar e..."

Parou um pouco. Ezequiel releu e percebeu que seu vocabulário era tão pobre quanto o da besta amarrada, seria passível do riso dos anjos, o que permitiu tal floreamento ali no final na parte do monte de açúcar, ninguém esperaria uma metáfora (ele achava que era uma metáfora cada vez que se mudam um pouco as coisas, não sabia explicar ─ mas não era uma metáfora) da parte dele. Ficou satisfeito e pensou em ler o texto todo de novo pra mudar mais coisas e ver os erros, mas decidiu continuar depois: tinha tanta vontade de brincar que foi correndo até as crianças.




Tenho dois caminhos: ou fujo ou morro no campo de batalha. Para aqueles que apreciam a astúcia de uma fuga, eu digo: os invasores estão há apenas duas horas de distância. Àqueles honrosos que preferem arriscar seu destino na lâmina de uma espada, rebato: sou o último da minha raça, possuo apenas um daisho, tenho poucos mantimentos e enfrentarei pelo menos cinco mil inimigos. Apenas a sorte pode traçar meu caminho.

Por precaução iniciei um pequeno ritual para encantar minhas armas. Quando pequeno aprendi certos ritos herdados dos escravos alienígenas e com o tempo, através do estudo do ocultismo, aprendi a uni-los com os poderosos feitiços africanos. Em poucos segundos as espadas se destacavam por suas lâminas enegrecidas e recheadas de signos indecifráveis. Nela lia-se SUED, o nome do programa que destruiu o mundo.

Meu corpo também precisava de força e nada como a autoflagelação para livrar-me do medo. Cobri meu rosto com 21 piercings, respeitando o número de familiares que nessa guerra perdi. Resolvi raspar também meu cabelo; queria mostrar às divindades que naquele momento estava livre do plano material, só me interessava viver.

Em frente ao espelho reparei na figura que me encarava: havia calma em seu rosto e sua nudez era revestida pelas plumas da morte.

Para engrandecer meu espírito, desci as escadarias e me conduzi ao portão principal da cidadela. No relento observei as fileiras de máquinas que se aproximavam; meu coração foi intoxicado pelo medo e pelo ódio. Temerosamente minhas mãos alcançaram as espadas e naquele momento, desprovido de qualquer auxílio e sustentado pela confiança, corri na direção do inimigo. Minha visão ficou turva e somente lembro-me da raiva que de mim emanava.

***

Acordei dias depois do ocorrido com as dores das feridas herdadas no combate; o forte cheiro da decomposição me obrigou a sair daquele local. Optei por evadir daquelas terras levando o pouco que me restava. No horizonte da montanha de mortos vi no céu a figura Daquele que me ajudou; senti dentro de mim que era Izrael e que talvez pudesse matar o próprio programador.