"Embainha a tua espada; porque todos os que lançarem mão da espada, à espada morrerão." - Mateus 26:47


"Eu vou dominar o mundo!"

Foram as palavras de Renato na formatura do curso de publicidade, seguidas de riso geral. Depois veio a pós, o mestrado, os estudos da cor e da semiótica. Renato tornara-se um mestre dos sentidos, na mais precisa definição. Sua agência produzia inúmeras peças. Promoveu de bandas de rock a sabonetes, sempre com o mais sútil controle sinestésico. O preço de sua publicidade provocou divórcios, histerias e paixões irremediáveis nos mais diversos tipos. Renato nem sabia de seu poder , e lucrava.

"Mas esper..!"

Balbuciou à enfermeira que arrancava suas calças ensanguentadas. Sentiu a cabeça pesar. Desmaiou e contaram que foi atropelado por um Chevy 64'. Não sentia mais o corpo, tornara-se um vegetal, só conseguia falar. A família regava sua depressão com as eventuais milongas, e ele só ouvia, na cadeira de rodas , na sala de jantar. Renunciou ao trabalho e passava os dias em casa, toda sua sabedoria atrofiou.

"Verde... cheiroso.. bom."

Disse, infantil, enquanto olhava seu presente. Recebia com freqüencia presentes coloridos e cheirosos, que levavam-no ao estado mais débil do cérebro. Fazia pirraça para segurá-los. Acusavam-no, aos sussurros penosos, de loucura. Um dia um Chevy 64' estacionou na frente de sua casa. A dona, cínica, riu-se do efeito da vingança ao ver o vegetativo Renato. "Moça.. presente?" foi o máximo que ele formulou. Após entregar mais um presente, aberto as pressas, confessou: o homem que mais amou na vida nunca existiu, fora apenas mais um trabalho do publicitário. A dona do Chevy 64' retirou-se, de certo modo, satisfeita.




Embriagados de ódio, os policiais tomaram a última dose de heroína antes de dispararem nas fétidas ruas da metrópole com seus triciclos recheados de signos anarquistas. Armados de machados, correntes e navalhas, dirigiram-se para a praça do relógio; vestiam-se com pinturas indígenas de guerra e ocupavam-se em gritar todo tipo de frase revolucionária. Eram três.

Os pedestres se escondiam dos sons sintéticos emitidos pelos triciclos (ou eram cavalos mecânicos?) que pilotavam. O ar cheirava a carne e a podridão. Carreiras de pó eram inspiradas por anjos, enquanto o trio de policiais atropelava crianças e fazia assobiar a lâmina enferrujada da navalha por entre os pescoços de transeuntes. Os nervos rasgavam por dentro; toxinas subiam e desciam por entre pensamentos filosóficos e libertadores. Burnout baby!

A praça do relógio estava cheia. Muitas pessoas aproveitavam aquelas serenas tardes de Domingo para fazerem orgias e praticarem atos pagãos. A selvageria humana brindava taças em nome dos deuses da perversão! Os nervos aceleravam. Os policiais, lavados de fluidos corpóreos até a alma, corriam ferozmente para seu destino gore. Ácidos energéticos artificiais saltitavam por dentro do crânio coberto por um quepe.

Adentraram a praça; o horror show começaria. A heroína eletrizava os policiais, eletrizava o trio de policiais que assassinavam sob seus três triciclos manchados de excitação. Machados cegos racharam as têmporas de maliciosos que insistiam em praticar posições anormais nas suas orgias. Navalhas deformaram mulheres pagãs em meio a um rito nefasto. Degolaram também, sentindo o espesso líquido vazando por dentro de suas calças, boêmios, sádicos, andróides, magos, demônios e seres invocados por magias proibidas. A praça mergulhava em sangue e ardia como um caldeirão de carne humana; a situação era semelhante ao de um circo de membros removidos cirurgicamente e animados por uma tecnologia doentia.

Mataram todos; estupraram ainda alguns mortos. Os policiais, porém ainda gritavam palavras ininteligíveis e começavam a perfurar seus próprios corpos. Os nervos urravam de prazer, pois ainda queriam mais. Após outra dose de heroína, esta acrescentada de alquímicos, os policiais com pinturas indígenas se entreolharam, fizeram o sinal do caos e puseram-se a matar uns aos outros; tudo ritmado ao som ácido de um jazz decadente.




01h37min AM

Depois de tomar um copo de Coca-Cola, ir ao banheiro e preparar minha cama para ir dormir, resolvi escrever um conto. Imaginei escrever um texto de terror, algo com espíritos, demônios ou alguma aberração em busca de vingança; algo bem clichê mesmo! Infelizmente acabei por ficar sem ter o que escrever; falta de criatividade dá nisso. Vou ir assistir um pouco de televisão, porque acabou de começar “Alien – O Oitavo Passageiro”.

03h30min AM

Esse filme é mesmo um clássico do cinema de ficção científica. Agora que já escovei os dentes, tenho uma chance de pelos menos iniciar um parágrafo. Que tal falar sobre um cientista que... só um momento, acho que tem alguém lá embaixo.

03h38min AM

Voltei. Tem alguma coisa lá na cozinha. Eu vi algo quando desci a escada e olhei de esguelha para a pia... não vi muito bem o que era, mas era um vulto bem grande, espero que seja um cachorro ou algum outro animal que entrou pela porta dos fundos; isso já aconteceu outras vezes. Vou ligar para meu pai e ver onde ele guardou aquela espingarda de chumbo; melhor prevenir.

03h53min AM

Já liguei para ele; acabei achando a espingarda no fundo do armário, junto de umas bugigangas. Acho que aquela coisa ainda está lá, estou ouvindo alguns gemidos. Vou descer com cautela e espantá-la; só usarei a espingarda se for preciso.

04h01min AM

Estou preso aqui no quarto! Tem alguma coisa do lado de fora. Acabei deixando a espingarda cair quando vi uma figura de formato bizarro nos pés da escada. Era como um espectro translúcido de cor negra, ele tinha um formato estranho, eu não parei para olhar direito, mas era redondo e parecia que algumas faces estavam gritando de dentro da esfera central. Ele não tinha rosto, não tinha boca, contudo começou a guinchar quando me viu! Antes de subir as escadas correndo, reparei que havia símbolos e uma escuridão rodeando aquela coisa, aquela coisa.

04h24min AM

Lá fora ainda está silencioso. Pior que deixei o telefone bem em cima da cama dos meus pais. Não sei se abro a porta e corro para lá...

04h39min AM

Ainda estou aqui; lá fora não há nada, apesar de ouvir vagamente alguns barulhos curiosos. Trens, leões, o motor de um barco, crianças rindo, um sino, uma voz típica de um comercial radiofônico, alguém falando em uma língua estranha, uma bateria e um ar condicionado sendo ligado. Já estou entrando em desespero, meus pais só voltam amanhã de manhã. Eu poderia ir dormir, mas nada garante que eu não sofra um ataque durante o resto da noite. Espero que tudo não passe de uma brincadeira idiota dos meus amigos...

04h43min AM

Vou correr para o quarto dos meus pais agora, creio que consiga pegar o telefone antes que me peguem.

05h01min AM

É O FIM! ACABOU, ACABOU TUDO! NÃO ESTOU ENTENDENDO. Quando eu abri a porta do meu quarto, não havia NADA, mas NADA mesmo, a soleira da minha porta divida o meu quarto do resto inexistente, do vazio. Do outro lado do umbral só havia a cor branca, não existia mais nada além. Devo estar sonhando, não é possível. Vou olhar pela janela, vou pular do segundo andar mesmo e correr até o posto policial mais próximo.

05h04min AM

MERDA! Como pode estar acontecendo isso? Não há nada através da janela, nada mesmo, assim como do outro lado da porta. Acho que vou dormir, não estou me sentindo bem.

08h15min AM

09h00min AM

10h25min AM

11h35min AM

Nenhum canal de TV tem sintonia. A internet não está conectando e a energia elétrica não funciona mais; só estou com dois terços da bateria do laptop agora. Devo estar drogado, não é possível. Pelo menos consegui meu conto de terror, isso é irônico demais.

11h52min AM

Vou morrer de tédio. Vou morrer sem ver meus pais. Vou morrer sem ter lido todos os livros que queria e principalmente vou morrer virgem.

01h03min PM

Rezei um pouco, isso me deixou um pouco mais calmo. Estou morrendo de fome; estou pensando seriamente em atravessar o nada.

01h14min PM

Aqueles barulhos estranhos estão voltando... Aquela coisa! ELA ESTÁ VINDO, EU SINTO ISSO! Acho que vou sair pela janela, não importa em que lugar eu vá parar. Espero que alguém leia esse monte de lixo que escrevi.

01h37min PM

***

Após doze horas desacordado, o garoto levantou de modo abrupto; em sua boca estava o gosto azedo de um presságio.








Por motivos desse conto ter sido publicado pela editora MOJO BOOKS, peço que acessem o link direto para o site da mesma, lá vocês poderão conferir o conto, comentar e ainda votar nele! Aguardo a visualização de todos os leitores do Tigres de Areia.

Abraços saudosos.



Das conversas de MSN, da amizade e da imaginação surgiram os Tigres de Areia.

Cezar, amante da fantasia, das ficções e de outros tanto f's, e Willian, do assombro, do maravilhamento e de outros infinitos, fizeram este blog para convidar amigos e interessados para o exercício de crítica do nosso material que até então só foi veiculado entre os dois. Em plena flor criativa, descobriram novas faces para o texto; novos experimentos para com a milenar atividade de contar mentiras e histórias. Com inspirações em músicas, arte, escritores que vão desde Ítalo Calvino até Michael Ende, o projeto, que ainda mantém proporções modestas, pretende, utopicamente, driblar o pós-modernismo e, futuramente, criar laços com outros tantos companheiros que apreciam e desafiam a arte da escrita.

"Dividir e conquistar" é a desgastada máxima , portanto abrimos espaço para jovens talentos da escrita e ilustração. Se quiser fazer parte da equipe, entre em contato conosco através do email tigresdeareia@gmail.com.