O escritório não recebia tinta do novo regime há um bom tempo. A secretária se esforçava para escrever "Motivo da detenção: Crime Político/Subversão" na ficha de Liev. Este, ainda de roupão, observava a marca de bota na porta de seu apartamento em Leningrado, enquanto arrastavam-no para o campo de trabalho.

Cansado de beber o silêncio do Gulag nos primeiros dias, permitiu-se amizade com músicos. Aprendeu a tocar alguns instrumentos e as noites não eram mais tão solitárias. Percebeu que o céu da Sibéria era imenso e abençoava todas as possibilidades.

As botas engraxadas mancharam o pátio e ninguém entendeu nada. Os soldados deveriam combater os alemães antes de chegarem a Estalingrado, portanto saíram com pressa. O ruído da porteira suja de lama se debatendo ao vento talvez foi o riso da ironia de ser preso por irmãos. Todos os presos continuaram trabalhando, mesmo sem capatazes. Pregou-se que ali deveria ser fundado um povoado que prezasse pelas artes, educação e democracia. Liev, há vinte anos preso, ficou confuso com o som da porteira que se debatia.

"Um dois três , vai!" começaram a tocar e foram-se. A pequena caravana de Liev era composta de ciganos, artistas circenses, músicos e outros nômades, ao passo que os presos provenientes de educação burguesa preferiram ficar. Liev, passando pela porteira, esqueceu-se da falhada condenação de sua ficha.

Na terceira volta pela devastada Eurásia, a caravana congregava quinze hectares de pessoas. Eram órfãos, desertores, mulheres que carregavam filhos da dor e alguns poetas. Seguiam ao mesmo passo; a música incessante trazia conforto. Nos comícios, Liev era questionado sobre um possível assentamento. "Em visão tudo isso me foi dito" dizia ao povo. A caminhada permitiu a expiação das dores, agora partiriam para uma nova terra.

O monte presente na visão de Liev ficava as beiras do mar Cáspio, precisamente sobre a histórica Itil. Acamparam próximos a ele e, ao fim dos ventos sazonais, eis que ela surgiu.

Quando a última criança pulou para a superfície daquela ilha que flutuava, Liev notou que seu lugar também não era ali. Ajudou a conceber a nova cidade que, como promessa, não evocaria os dias ruins e teria suas bases na fraternidade.

Ao término das celebrações, tomado quer se de compaixão quer se de auto-indulgência, juntou os músicos da caravana inicial e partiu para mais uma volta pela Eurásia. Em segredo desejou que sua próxima visão revelasse uma cidade próxima a sua terra natal. Tocou a banda e partiram para levar alegria aos esquecidos. Seus dedos salpicavam o acordeom de graça enquanto imaginava outro lugar perfeito, doravante sustentado pelos céus de Leningrado.

Um comentário:

Duda Falcão disse...

Gostei!
A realidade histórica está muito bem inserida no contexto. As citações geográficas nos posicionam no espaço. E o fantástico se torna presente no texto sem parecer destoar do conjunto. Continuarei lendo outros contos.
Um abraço!